Algo completamente diferente
O meu amigo RUI, colocou no seu blog o seguinte texto da sua autoria:
(pode ser visto no original aqui)
"Um Passeio no Jardim
Lembro-me que naquela altura pensava com frequência nos meus pais. Recordava a toda a hora episódios da minha vida com eles, de todos tentando retirar uma lição, um ensinamento.Tentava também avaliar se tinha sido um bom filho, se eles tinham sido bons pais; onde é que cada um de nós tinha falhado e onde é que a sabedoria deles me tinha auxiliado.Fazia isto automaticamente, sem dar por isso, não era nenhuma decisão consciente. Até que um dia a razão para o fazer se tornou evidente. De tão óbvia, não sei porque nunca tinha tomado consciência dela: eu ia ser pai pela primeira vez em breve.Esta iminência da paternidade assustava-me um pouco. Queria ser um bom pai - o melhor pai -, e não fazia a menor ideia de como o podia ser. Por vezes, ficava algo angustiado com a ideia, com a dúvida se seria eu capaz. Estaria preparado para tão grande mudança na minha vida? Esta preocupação só era superada pelo fascínio que sentia com a ideia de gerar vida, de eu estar na origem desse processo fantástico.Se as mães o sentem de uma forma especial, única, nós, os pais (alguns, pelo menos), sentimos as coisas de maneira diferente, claro, mas também intensamente. Eu era dos que sentia assim.A ideia de gerar uma vida fascinava-me, enchia-me de um sentimento maior que eu.
Até que um dia…
Não sei se as pessoas que andam de comboio alguma vez pensam em quem os vai a conduzir. Num autocarro, num táxi, é fácil perceber quem vai os comandos, damos pelos condutores (mesmo nos aviões, sem o vermos, o piloto está mais presente que no comboio, quanto mais não seja porque no inicio da viagem o seu nome é referido e durante o trajecto ele faz uma pequena comunicação aos passageiros), num comboio não, aquilo pára, arranca, abre portas e quase nunca se dá pela pessoa que o vai a conduzir.Eu sou maquinista da CP e gosto muito do que faço. O anonimato da função permite-me pensar em coisas como a paternidade mesmo enquanto estou a trabalhar. Sendo uma função de grande responsabilidade, está de tal maneira automatizada, que acaba por ser relativamente calma e livre de stress, afinal, não temos horas de ponta e basta alguma atenção à sinalização que aquilo até as curvas faz sozinho.
Há três anos atrás, estava eu absorvido nos pensamentos de que vos falava, quando, ao sair de uma curva antes da estação de Barcarena, algo me arrancou ao torpor em que me encontrava.A princípio não consegui apreender o que era, foi o inconsciente que me alertou para algo de errado; o cérebro demorou uns segundos a processar a informação mas, quando tomei consciência dela, não podia ser pior: estava uma pessoa na linha a tentar subir para a plataforma da estação.Freio em emergência mas, tal como um petroleiro em mar alto, várias dezenas de toneladas de comboio a uma velocidade razoável, não param em poucos metros.Aflição, muita aflição. De um momento para o outro, vemo-nos numa situação surreal, é como se fossemos transportados para um filme, algo de terrível está prestes para acontecer e nós não pudemos fazer nada. Só que neste caso não estamos sentados na plateia ou no sofá de casa, estamos no meio da acção, somos intervenientes directos. Pânico, muito pânico.São breves segundos que demoram muitos minutos, muitas horas a passar, ao serem recordados vezes sem conta. É algo que nunca mais me vai abandonar. Terror, muito terror.
Uma rapariga com a sua filha pequena ao colo decidiu atravessar a linha, achou que conseguia subir a plataforma em segurança e assim poupar duzentos metros de caminho e cinco minutos de tempo. Colocou a filha no apeadeiro e, quando se preparava para tentar subir, ouviu o comboio aproximar-se. Ao vê-lo sair da curva, também o seu cérebro demorou a processar a informação, também ela deve ter pensado que algo de terrível estava para acontecer. E, depois, tomou a decisão errada, fatal: em vez de, num último esforço, ter tentado subir, optou por se encolher e ficar imóvel. Apesar de a velocidade ser já reduzida, o comboio entrou na estação e o degrau da primeira porta apanhou-a, depois outro, e outro…Aflição, pânico, terror? Seria isso que eu sentia? Com uma tremenda descarga de adrenalina a correr-me no corpo, o ritmo cardíaco descontrolado e o cérebro em desatino, consegui realizar os procedimentos habituais nestas situações, mas em piloto automático: não me lembro de ter contactado o posto de comando da Refer/CP e de ter chamado o Revisor, mas sei que o fiz. Lembro-me de “voltar a mim” quando, ao olhar para o espelho retrovisor, vi a criança, ali, parada, perdida. Parecia olhar para mim. Em que pensaria ela?
Quando fui para esta profissão sabia que era praticamente inevitável passar por esta situação. São raros os maquinistas que não tenham passado por isto e os mais velhos fazem questão de lembrar isso a quem começa – o monitor do meu curso tinha 16 casos no curriculum. Se noutros países quando algo semelhante ocorre, a empresa não deixa o maquinista conduzir mais nesse dia e coloca ajuda psicológica à disposição, cá, pergunta-se via rádio se o corpo está a obstruir a via; caso não esteja, depois da polícia tomar conta da ocorrência, somos mandados seguir viagem - tenho um colega a quem isto aconteceu num sentido e, ao fazer o trajecto de volta, voltou a acontecer.
Como numa fracção de segundo, sem qualquer aviso, sem um sinal, a nossa vida pode mudar. Absorvido pela ideia de ser responsável por gerar vida, eu acabava de estar envolvido na perda de uma.Este conflito – há falta de melhor termo -, abalou-me profundamente. Durante muito tempo as coisas deixaram de fazer sentido, pelo menos o sentido que faziam habitualmente. Questionei tudo. As certezas que tinha desapareceram. Tudo era transitório, efémero. Se pensava na minha filha que ia nascer, logo pensava naquela figura no espelho retrovisor. Porquê? Tinha sido apenas uma decisão errada da sua mãe. Como é que um acto irreflectido, mas simples, banal, podia ter consequências tão dramáticas, sem possibilidade de segunda chance, sem direito a arrependimento?E no centro de tudo, estava eu. Conseguiria amar a minha filha? Seria eu digno de uma filha? Haveria o destino de, um dia, procurar vingança?Com o tempo, as duvidas foram sendo menos, a compreensão do que aconteceu maior. Tenho hoje a consciência exacta do meu papel em tudo o que aconteceu, mas continua a custar. Lembro-me ainda muitas vezes de tudo. Revejo os detalhes da cena com frequência.
No outro dia, parado na mesma estação em sentido contrário, reparei numa mulher que estava parada junto à linha, fora da plataforma. Percebi que aguardava que eu passasse para atravessar pelos carris. O local era exactamente o mesmo do acidente, atravessar ali na altura em que um comboio está a chegar, é tragédia pela certa.Apitei-lhe. Por gestos perguntei-lhe se sabia o perigo que corria. A resposta foi insultar-me; chamou-me todos os nomes que sabia.A vontade que tive foi sair e dar-lhe uma carga de porrada. Juro, foi por pouco que não o fiz!Não têm noção. Não querem saber.
Agora vou terminar, tenho que ir buscar a minha filha à escola, prometi-lhe que íamos passear ao jardim."
RUI, obrigado pelo teu texto, retribuo aquele abraço.
Um abraço, também, para o sr. ORV Amaral, que também passou por isto.
Um abraço a todos os colegas, que sabem o que é isto.
Lembro-me que naquela altura pensava com frequência nos meus pais. Recordava a toda a hora episódios da minha vida com eles, de todos tentando retirar uma lição, um ensinamento.Tentava também avaliar se tinha sido um bom filho, se eles tinham sido bons pais; onde é que cada um de nós tinha falhado e onde é que a sabedoria deles me tinha auxiliado.Fazia isto automaticamente, sem dar por isso, não era nenhuma decisão consciente. Até que um dia a razão para o fazer se tornou evidente. De tão óbvia, não sei porque nunca tinha tomado consciência dela: eu ia ser pai pela primeira vez em breve.Esta iminência da paternidade assustava-me um pouco. Queria ser um bom pai - o melhor pai -, e não fazia a menor ideia de como o podia ser. Por vezes, ficava algo angustiado com a ideia, com a dúvida se seria eu capaz. Estaria preparado para tão grande mudança na minha vida? Esta preocupação só era superada pelo fascínio que sentia com a ideia de gerar vida, de eu estar na origem desse processo fantástico.Se as mães o sentem de uma forma especial, única, nós, os pais (alguns, pelo menos), sentimos as coisas de maneira diferente, claro, mas também intensamente. Eu era dos que sentia assim.A ideia de gerar uma vida fascinava-me, enchia-me de um sentimento maior que eu.
Até que um dia…
Não sei se as pessoas que andam de comboio alguma vez pensam em quem os vai a conduzir. Num autocarro, num táxi, é fácil perceber quem vai os comandos, damos pelos condutores (mesmo nos aviões, sem o vermos, o piloto está mais presente que no comboio, quanto mais não seja porque no inicio da viagem o seu nome é referido e durante o trajecto ele faz uma pequena comunicação aos passageiros), num comboio não, aquilo pára, arranca, abre portas e quase nunca se dá pela pessoa que o vai a conduzir.Eu sou maquinista da CP e gosto muito do que faço. O anonimato da função permite-me pensar em coisas como a paternidade mesmo enquanto estou a trabalhar. Sendo uma função de grande responsabilidade, está de tal maneira automatizada, que acaba por ser relativamente calma e livre de stress, afinal, não temos horas de ponta e basta alguma atenção à sinalização que aquilo até as curvas faz sozinho.
Há três anos atrás, estava eu absorvido nos pensamentos de que vos falava, quando, ao sair de uma curva antes da estação de Barcarena, algo me arrancou ao torpor em que me encontrava.A princípio não consegui apreender o que era, foi o inconsciente que me alertou para algo de errado; o cérebro demorou uns segundos a processar a informação mas, quando tomei consciência dela, não podia ser pior: estava uma pessoa na linha a tentar subir para a plataforma da estação.Freio em emergência mas, tal como um petroleiro em mar alto, várias dezenas de toneladas de comboio a uma velocidade razoável, não param em poucos metros.Aflição, muita aflição. De um momento para o outro, vemo-nos numa situação surreal, é como se fossemos transportados para um filme, algo de terrível está prestes para acontecer e nós não pudemos fazer nada. Só que neste caso não estamos sentados na plateia ou no sofá de casa, estamos no meio da acção, somos intervenientes directos. Pânico, muito pânico.São breves segundos que demoram muitos minutos, muitas horas a passar, ao serem recordados vezes sem conta. É algo que nunca mais me vai abandonar. Terror, muito terror.
Uma rapariga com a sua filha pequena ao colo decidiu atravessar a linha, achou que conseguia subir a plataforma em segurança e assim poupar duzentos metros de caminho e cinco minutos de tempo. Colocou a filha no apeadeiro e, quando se preparava para tentar subir, ouviu o comboio aproximar-se. Ao vê-lo sair da curva, também o seu cérebro demorou a processar a informação, também ela deve ter pensado que algo de terrível estava para acontecer. E, depois, tomou a decisão errada, fatal: em vez de, num último esforço, ter tentado subir, optou por se encolher e ficar imóvel. Apesar de a velocidade ser já reduzida, o comboio entrou na estação e o degrau da primeira porta apanhou-a, depois outro, e outro…Aflição, pânico, terror? Seria isso que eu sentia? Com uma tremenda descarga de adrenalina a correr-me no corpo, o ritmo cardíaco descontrolado e o cérebro em desatino, consegui realizar os procedimentos habituais nestas situações, mas em piloto automático: não me lembro de ter contactado o posto de comando da Refer/CP e de ter chamado o Revisor, mas sei que o fiz. Lembro-me de “voltar a mim” quando, ao olhar para o espelho retrovisor, vi a criança, ali, parada, perdida. Parecia olhar para mim. Em que pensaria ela?
Quando fui para esta profissão sabia que era praticamente inevitável passar por esta situação. São raros os maquinistas que não tenham passado por isto e os mais velhos fazem questão de lembrar isso a quem começa – o monitor do meu curso tinha 16 casos no curriculum. Se noutros países quando algo semelhante ocorre, a empresa não deixa o maquinista conduzir mais nesse dia e coloca ajuda psicológica à disposição, cá, pergunta-se via rádio se o corpo está a obstruir a via; caso não esteja, depois da polícia tomar conta da ocorrência, somos mandados seguir viagem - tenho um colega a quem isto aconteceu num sentido e, ao fazer o trajecto de volta, voltou a acontecer.
Como numa fracção de segundo, sem qualquer aviso, sem um sinal, a nossa vida pode mudar. Absorvido pela ideia de ser responsável por gerar vida, eu acabava de estar envolvido na perda de uma.Este conflito – há falta de melhor termo -, abalou-me profundamente. Durante muito tempo as coisas deixaram de fazer sentido, pelo menos o sentido que faziam habitualmente. Questionei tudo. As certezas que tinha desapareceram. Tudo era transitório, efémero. Se pensava na minha filha que ia nascer, logo pensava naquela figura no espelho retrovisor. Porquê? Tinha sido apenas uma decisão errada da sua mãe. Como é que um acto irreflectido, mas simples, banal, podia ter consequências tão dramáticas, sem possibilidade de segunda chance, sem direito a arrependimento?E no centro de tudo, estava eu. Conseguiria amar a minha filha? Seria eu digno de uma filha? Haveria o destino de, um dia, procurar vingança?Com o tempo, as duvidas foram sendo menos, a compreensão do que aconteceu maior. Tenho hoje a consciência exacta do meu papel em tudo o que aconteceu, mas continua a custar. Lembro-me ainda muitas vezes de tudo. Revejo os detalhes da cena com frequência.
No outro dia, parado na mesma estação em sentido contrário, reparei numa mulher que estava parada junto à linha, fora da plataforma. Percebi que aguardava que eu passasse para atravessar pelos carris. O local era exactamente o mesmo do acidente, atravessar ali na altura em que um comboio está a chegar, é tragédia pela certa.Apitei-lhe. Por gestos perguntei-lhe se sabia o perigo que corria. A resposta foi insultar-me; chamou-me todos os nomes que sabia.A vontade que tive foi sair e dar-lhe uma carga de porrada. Juro, foi por pouco que não o fiz!Não têm noção. Não querem saber.
Agora vou terminar, tenho que ir buscar a minha filha à escola, prometi-lhe que íamos passear ao jardim."
RUI, obrigado pelo teu texto, retribuo aquele abraço.
Um abraço, também, para o sr. ORV Amaral, que também passou por isto.
Um abraço a todos os colegas, que sabem o que é isto.
8 Comments:
Grande virilão, é quando expomos as nossas fraquezas sem medos que nos tornamos mais fortes.
Só somos responsáveis pelos nossos próprios erros, os dos outros, pertencem-lhes a eles...
Muitos beijos, super-pai!!
15/12/05 09:40
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
15/12/05 11:04
Para quem, como eu, estou em vias de vir a ser pai, este texto bateu forte, muito forte... As lágrimas vieram-me aos olhos e se não estivesse em local público, não sei como seria...
Lembro-me do final do filme "O Resgate do Soldado Ryan". À beira da morte o personagem John Miller (Tom Hanks) pede ao soldado James Ryan (cujo resgate tinha custado a vida de vários companheiros) para fazer com que o resto da vida dele valha a pena o sacrifício.
Que a relação entre si e a sua filha valha pela tragédia que ocorreu, faça com que essa relação seja ainda mais forte e especial...
Um abraço
PM
vouserpai.blogdrive.com
15/12/05 13:53
Mariquinhas...Lamechas
:)
És virilão só de nome.
Um «gajo à séria» não se contunde, e leva sempre a rotação até ao fim..., pois é condição obrigatória ter o carimbo «têmpera rija» (para ficar bem na foto).
Um dia destes convido-te para lanchar numa esplanada e, com a luz dolente de Outono a aquecer as costas, beberás um cházinho temperado com uma lágrima de leite «terra nostra», com uma tosta mista. Explicar-te-ei (entre dentadas numa sandes de presunto e arrotos de cerveja) onde guardo os meus mortos.
15/12/05 14:22
Depois de 4, a sensação de dor e frustração, continua a ser a mesma. Mesmo sabendo que nada podemos fazer, e apenas podemos assistir de bancada à tragédia, continuamos a pensar se não haveria mesmo alguma coisa que pudesse alterar o desfecho. E o apoio que nos é dado, é: "vão fazer o TR, e depois continuas a rotação!"
15/12/05 19:43
Grande Rui, achei notavel a tua historia, apesar de nunca me ter estreado nessas andanças (ainda não apanhei ninguem), admito que mais cedo ou mais tarde pode-me acontecer.
Por mim podes ficar descansado, se fores tao bom pai como es companheiro podes crer que a tua filha vai ter o melhor pai do mundo.
15/12/05 20:56
Grande Rui, achei notavel a tua historia, apesar de nunca me ter estreado nessas andanças (ainda não apanhei ninguem), admito que mais cedo ou mais tarde pode-me acontecer.
Por mim podes ficar descansado, se fores tao bom pai como es companheiro podes crer que a tua filha vai ter o melhor pai do mundo.
15/12/05 20:56
Obrigado Rui, por dividires connosco, o sofrimento, a dor e o sentir. Acredito que falarei por muitos, se te disser que é por estas histórias de vida, que se constroi a nossa vida de maquinistas. E que estarei aqui para te ouvir e dizer que sofremos contigo. Para te ouvir a ti, a todos e a mim. Esta é uma profissão de riscos, desconhecidos por muitos, escondidos por outros. Não convém falar se o maquinista precisa de apoio psicológico, se o seu comportamento fica alterado a nivel profissional e pessoal. Guardar os mortos, é sinal de que algo aconteceu e está sufocado e faz sofrer. É preciso coragem para fazer sair o grito.
A nossa classe é feita destes episódios e são estas as discussões que se devem escutar neste blog. Por isto ele foi criado. É assim que se levantam os verdadeiros problemas, se expôem e se podem tirar conclusões...
Obrigado...
Seja.
17/12/05 02:50
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